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XAntes de escrever esse texto, pensei em vários casos curiosos e interessantes com os quais já me deparei enquanto servidor da Defensoria Pública. Na verdade, são muitos, porque estagiei por dois anos na Defensoria Pública do Estado do Piauí, depois fui assessor por mais um ano na mesma instituição e, por fim, sou defensor público há mais de quatro anos na Defensoria Pública do Estado do Maranhão.
No esforço de escolher um caso inaugural para discutir com vocês, pensei em um caso ocorrido no interior do Piauí, que me pareceu saído de um manual de Direito Penal. Ao tempo, eu era estagiário da Defensoria Pública Itinerante do Estado do Piauí, responsável por atender todas as comarcas do interior que não contam com núcleo próprio da Defensoria Pública.
O processo que me foi distribuído para apresentação das alegações finais defensivas dizia respeito à suposta prática do crime de furto simples de uma bicicleta. Apesar do nome, o caso não tem nada a ver com o famoso filme italiano “Ladrões de bicicleta”, dirigido por Vitorio de Sica. Aliás, para os amantes da sétima arte, vale a pena assistir a esse filme clássico. Aproveitem a quarentena.
Na verdade, nosso caso envolve muito menos glamour e muito mais álcool. O assistido da Defensoria, a quem vamos chamar de José, estava numa festa de forró e havia bebido várias cervejas durante a noite. Quando José saiu da festa, pegou sua bicicleta e foi pra casa. Contudo, no outro dia, quando acordou, José foi surpreendido com a chegada da Polícia em sua casa.
Qual não foi a surpresa de José quando foi preso em flagrante pelo crime de furto. De acordo com a Polícia, a bicicleta que ele havia pilotado depois da festa não era sua, e sim de outrem. A vítima foi à delegacia e confirmou que a bicicleta era sua e que alguém a havia levado logo depois da festa da noite anterior. José alegou que tomou a bicicleta por pensar ser a sua, de modo que nunca teve a intenção de furtar a bicicleta de ninguém. No entanto, como estava bêbado e o local estava muito escuro, pegou a bicicleta da vítima, achando ser a sua. Para melhorar a vida de José, na audiência de instrução (sim, por incrível que pareça, o juízo não absolveu sumariamente. Bem vindos ao sistema de justiça brasileiro), as testemunhas ouvidas falaram que o estacionamento estava lotado de bicicletas parecidas entre si. Imaginemos que era algo semelhante a essa imagem.
Diante do caso concreto (e da imagem ilustrativa), qual a tese defensiva primeva? Bem, nós pedimos o reconhecimento da atipicidade da conduta de José, em face do erro de tipo. Vamos aproveitar para lembrar um pouco esse instituto.
O erro de tipo pode ser classificado em essencial e acidental. O erro de tipo essencial ocorre, quando o agente erra sobre algum dos elementos do tipo, ou seja, quando lhe falta consciência sobre algum elemento do tipo. O erro de tipo essencial, por sua vez, possui duas classificações:
a) Invencível (inevitável ou escusável): o agente não tinha como evitar o erro, isto é, qualquer pessoa de cautela mediana também incidiria no mesmo erro. O erro elimina a consciência - elemento do dolo. Por consequência, o erro exclui o dolo. Nesse caso, o agente também NÃO agiu com descuido, porque qualquer pessoa de cautela mediana também cometeria o mesmo erro. Logo, o erro de tipo essencial invencível também exclui a culpa. Portanto, aqui, o agente não responde por nada, porque sua conduta é ATÍPICA, por ausência de dolo e de culpa.
b) Vencível (evitável ou inescusável): o agente tinha como evitar o erro, mas não evitou, porque agiu com descuido, isto é, outra pessoa de cautela mediana teria evitado o erro. Aqui também o erro elimina a consciência como elemento do dolo, logo, o erro exclui o dolo. Por outro lado, culpa significa justamente o descuido. Aqui, o agente errou, porque agiu com descuido; outra pessoa de cautela mediana evitaria o erro. Logo, o erro de tipo vencível permite a punição por culpa.
O erro de tipo essencial vencível está previsto no artigo 20, caput, CP, permitindo a punição da forma culposa, se ela estiver prevista em lei (princípio da excepcionalidade do crime culposo). Portanto, se o crime não possui modalidade culposa, o agente não responde por nada.
Art. 20 - O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei.
Bem, pessoal, a meu ver, José incorreu em erro de tipo invencível, haja vista que o local estava escuro, as bicicletas estavam amontoadas e eram parecidas, bem como pelo fato de ele se encontrar embriagado. De qualquer forma, visando a defesa mais ampla possível, no caso concreto, sempre devemos considerar a possibilidade de o juízo entender que o erro era vencível. Sem embargos, mesmo assim considerando, a conduta de José permanece atípica. Isso porque não existe a modalidade culposa do crime de furto.
Portanto, amigos, aquele exemplo que normalmente vemos apenas nos manuais já aconteceu na realidade, como sou testemunha. Na verdade, não me espantaria se esse fosse um caso comum, porém penso que na maioria das vezes, o caso não chega a gerar sequer a instauração de inquérito policial, quanto mais de processo penal. Infelizmente para José, seu caso não só foi investigado como também foi processado, de modo que ele teve que sofrer as penas do processo (que, por si só, já são muito gravosas).
Ao final, pelo menos José foi absolvido, pois o juízo da causa, em consonância com a tese defensiva, reconheceu a atipicidade de sua conduta, em virtude do erro de tipo.
Esse foi um breve estudo de caso concreto, como tantos enfrentados diariamente no âmbito da Defensoria Pública. Espero que tenha servido para motivá-los os estudos, familiarizar-se com a rotina da defesa e, de quebra, revisar um pouco a figura do erro de tipo, que não raro é alvo de muitas dúvidas pelos alunos.
Mário Sérgio Moura Santos
Defensor Público
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